sábado, 20 de junho de 2020

Ser solidário é ser humano: do assistencialismo à caridade

By Irenaldo Araújo   Posted at  08:36   No comments


Diante de quem está necessitado deve-se ou não oferecer algo para amenizar o seu sofrimento? Há quem diga que não e há quem afirme o contrário! Diante tais entendimentos, as pessoas se dividem entre a necessidade de se dar o peixe e a de ensinar a pescar! Mas diante tal polêmica, há ainda quem veja como necessário o entendimento dos porquês que estão levando ao aumento de pessoas necessitadas de ajudas emergenciais. E nesta relação, o que é caridade e o que é assistencialismo.
A solidariedade é algo inato ao humano. Diante de uma situação ameaçadora, muitas vezes somos levados quase que instintivamente a partir em direção de quem está necessitado. Muitas vezes nem sabemos quem é.
O interessante é que muitas vezes se parte ao outro pela dor sentida, mas quando se trata de pautar o porquê da dor, é como se nada tivesse a ver com isso. Por exemplo. Muitos partem na defesa de uma mulher vítima de violência, mas quando se sabe que ali é fruto de briga de casal, logo se diz: em briga de marido e mulher, não se mete a colher! Ou então: ao se deparar com alguém faminto, dar o pão parece tudo bem, mas caso se queira entender o porquê da fome, logo se diz que já está querendo fazer política!
O sentimento de ajuda parece ser o mesmo, mas o que difere é a sensibilidade de quem ajuda. Nos exemplos dados, a diferenciação está entre ficar no socorro imediato ou ajudar a pessoa a se levantar para que possa caminhar com as próprias forças. Na primeira situação, quem ajuda se conforma em doar sem procurar entender os porquês da necessidade: quem doa esboça o sentimento de que já está fazendo a sua parte, mas o problema pode estar naquele que está necessitado, pois pode ter feito algo para está merecendo passar por tudo isso.
No outro caso, não somente se ajuda de forma imediata, mas se procura entender os porquês que ocasionam tal situação. A pessoa é vista na sua totalidade. O sofrimento por si só é uma situação de injustiça. O aumento da pobreza, da violência, do abandono, por exemplo, pode ser um indicativo da ausência do estado, cujas políticas favorecem o aumento do abismo quanto ao acesso aos recursos produzidos numa dada sociedade. Neste caso, a economia está para além da defesa da vida.
O sentimento de solidariedade é instintivo, mas a capacidade de leitura dos fatos exige um pouco mais de envolvimento com quem sofre ou com a situação que gera tanta dor. Daqui parte-se para o abismo entre o assistencialismo e a caridade. No primeiro, basta a ajuda a quem está passando por uma situação de sofrimento. Não existe envolvimento. É como se quem ajuda não quisesse se misturar com quem sofre: dei a minha ajuda e pronto! Fiz a minha parte. Muitas vezes há um sentimento de pena, diante do sofrimento do outro.
Na caridade há um sentimento de empatia ou de compaixão com quem está vivenciando o sofrimento. A dor do outro passa a ser parte da preocupação de quem parte para a ajuda. O que está em jogo é a defesa da vida. Olha-se a pessoa por aquilo que passa no momento. É o mesmo sentimento apresentado por Jesus diante do homem que sofria às margens de uma estrada. O homem que parte para ajudar, não apenas cuida das feridas, mas se importa com o ferido. Tal atitude é tão profunda, que Jesus pede para que se faça a mesma coisa.
No assistencialismo é como se a ajuda por si bastasse. Na caridade, não basta a ajuda imediata, mas a situação que levou ao sofrimento deve ser denunciada. A caridade gera profecia. Numa época em que se aumenta a cada dia o número de pessoas necessitadas, precisamos de mais profetas e profetisas

segunda-feira, 20 de abril de 2015

A falência de um modelo

By Irenaldo Araújo   Posted at  11:52   Notas No comments
Há 33 países hoje à beira da instabilidade social devido à falta e ao preço dos alimentos, resultado direto do atual modelo industrial de agricultura dependente do petróleo.

A agricultura mundial está numa encruzilhada. A economia global impõe demandas conflitantes sobre os 1,5 bilhão de hectares cultivados. Não só se pede à terra agrícola que produza alimento suficiente para uma população crescente, mas também que produza biocombustíveis, e que faça isso de um modo que seja saudável para o meio ambiente, preservando a biodiversidade e diminuindo a emissão de gases de efeito estufa, e que, ainda, seja uma atividade economicamente viável para os agricultores.

Essas pressões estão desencadeando uma crise sem precedentes no sistema alimentar global, que já começa a se manifestar em protestos por escassez de alimentos em muitos países da Ásia e da África. De fato, há 33 países à beira da instabilidade social devido à falta e ao preço dos alimentos. Essa crise que ameaça a segurança alimentar de milhões de pessoas é o resultado direto do modelo industrial de agricultura, que não só é perigosamente dependente de hidrocarburos, mas tem, ainda, se tornado a maior força antrópica modificadora da biosfera. As crescentes pressões sobre a área agrícola —que está se reduzindo— estão minando a capacidade da natureza de suprir as demandas da humanidade quanto a alimentos, fibras e energia. A tragédia é que a população humana depende dos serviços ecológicos (ciclos de água, polinizadores, solos férteis, clima local benevolente, etc.) que a agricultura intensiva continuamente empurra para além de seus limites.

Antes do fim da primeira década do século XXI, a humanidade está tomando consciência rapidamente de que o modelo industrial capitalista de agricultura dependente de petróleo não mais funciona para suprir os alimentos necessários. Os preços inflacionários do petróleo inevitavelmente aumentam os custos de produção e os preços dos alimentos subiram a tal ponto que hoje um dólar compra 30% menos alimento do que há um ano. Uma pessoa na Nigéria gasta 73% da sua renda em alimento, no Vietnã 65% e na Indonésia 50%. Essa situação está piorando rapidamente, na medida em que a terra agrícola vai sendo destinada para biocombustíveis e na medida em que a mudança climática afeta o rendimento da terra pelas estiagens ou inundações.

Expandir terras agrícolas destinadas a biocombustíveis ou cultivos transgênicos, que já tomam 120 milhões de hectares, vai exacerbar os impactos ecológicos de monocultivos que continuamente degradam os serviços da natureza. Além disso, a agricultura industrial hoje contribui com mais de 1/3 das emissões globais de gases de efeito estufa, especialmente metano e óxidos nitrosos. Continuar com esse sistema degradante, como promove um sistema econômico neoliberal, ecologicamente desonesto por não refletir as externalidades ambientais não é uma opção viável.

O desafio imediato de nossa geração é transformar a agricultura industrial e iniciar uma transição dos sistemas alimentares para que não dependam de petróleo.
Precisamos de um paradigma alternativo de desenvolvimento agrícola, que propicie formas de agricultura ecológica, sustentável e socialmente justa. Redesenhar o sistema alimentar para formas mais eqüitativas e viáveis para agricultores e consumidores vai requerer mudanças radicais nas forças políticas e econômicas que determinam o que vai ser produzido, como, onde e para quem. O livre comércio sem controle social é o principal mecanismo que está expulsando os agricultores de suas terras e é o principal obstáculo para alcançar desenvolvimento e uma segurança alimentar local. Só desafiando o controle que as empresas multinacionais exercem sobre o sistema alimentar e o modelo agroexportador patrocinado pelos governos neoliberais será possível deter a espiral de pobreza, fome, migração rural e degradação ambiental.
O conceito de soberania alimentar, tal como é promovido pelo movimento mundial de pequenos agricultores, a Via Campesina, constitui a única alternativa viável para o sistema alimentar em colapso, que simplesmente falhou em seu cálculo de que o livre comércio internacional seria a chave para solucionar o problema alimentar mundial. Pelo contrário, a soberania alimentar enfatiza circuitos locais de produção-consumo e ações organizadas para obter acesso à terra, água, agrobiodiversidade, etc., recursos fundamentais que as comunidades rurais devem controlar para conseguir produzir alimentos com métodos agroecológicos.

Não há duvida que uma aliança entre agricultores e consumidores é de importância estratégica. Ao mesmo tempo que os consumidores devem descer na cadeia alimentar ao consumir menos proteína animal, precisam tomar consciência de que sua qualidade de vida está intimamente associada ao tipo de agricultura que é praticada nos cordões verdes que circundam povoados e cidades, não só pelo tipo e qualidade de cultivos que aí são produzidos, mas pelos serviços ambientais, como qualidade da água, microclima e conservação da biodiversidade, etc., que esta agricultura multifuncional proporciona.

Mas a multifuncionalidade só emerge quando as paisagens estão dominadas por centenas de sítios pequenos e biodiversos, que, como os estudiosos demonstram, podem produzir entre duas e dez vezes mais por unidade de área do que as fazendas de grande escala. Nos Estados Unidos os agricultores sustentáveis, em sua maioria pequenos e médios agricultores, geram uma produção total maior que os monocultivos extensivos, e fazem isso reduzindo a erosão e conservando melhor a biodiversidade. As comunidades rodeadas por pequenos sítios apresentam menos problemas sociais (alcoolismo, drogadição, violência familiar, etc.) e economias mais saudáveis que comunidades rodeadas por fazendas grandes e mecanizadas.

No estado de São Paulo, no Brasil, cidades rodeadas por grandes extensões de cana-de-açúcar são mais quentes do que cidades rodeadas por propriedades médias e diversificadas. Deveria ser óbvio, então, para os consumidores urbanos, que comer constitui ao mesmo tempo um ato ecológico e político, pois ao comprar alimentos em mercados locais ou feiras de agricultores, há um retorno a um modelo de agricultura adequada para a era pós-petroleira, enquanto ao comprar nas grandes redes de supermercados, perpetua-se o modelo agrícola não sustentável.

A escala e urgência do desafio que a humanidade enfrenta é sem precedentes e o que é preciso fazer é ambiental, social e politicamente possível. Erradicar a pobreza e a fome mundial requer um investimento anual de aproximadamente 50 bilhões de dólares, uma fração se comparado com o orçamento militar mundial, que chega a mais de um trilhão de dólares por ano. A velocidade com que essa mudança deve ser implementada é muito rápida, mas o que está em questão é se existe realmente vontade política de transformar radical e velozmente o sistema alimentar, antes que a fome e a insegurança alimentar alcancem proporções planetárias irreversíveis.

Por Miguel A. Altieri*
*Miguel A. Altieri é professor na Universidade da Califórnia (Berkeley) e membro da Sociedade Científica Latino-americana de Agroecologia (Socla). Tradução de Naila Freitas / Verso Tradutores. Publicado na Carta Maior. Reprodução autorizada, citando-se a fonte. (Carta Maior/EcoAgência) Fonte: Envolverde/Ecoagência© Copyleft - É livre a reprodução exclusivamente para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída.

Teve copa: e agora? (Copa da Fifa, protestos e eleições)

By Irenaldo Araújo   Posted at  11:50   Notas No comments


Há dois anos, ninguém, do governo ou da oposição, era contra realização, no Brasil, da Copa do Mundo de Futebol da FIFA. Lembram da vibração do governo, políticos e empresários? Todos previam e desejavam vantagens econômicas e políticas. Não se esperava que, tão cedo, aparecesse o fantasma de junho de 2013 anunciando: NÃO VAI TER COPA. Medrosos e astutos, os ratos começaram a pular de um navio ameaçado, sem desistir, entretanto, de tirar vantagens possíveis do desastre.

A FIFA nunca duvidou de que o governo brasileiro utilizaria a persuasão e as forças armadas para garantir realização da COPA. Não foi pouco o quanto a FIFA ganhou com isenção de impostos, venda de ingressos e exclusividade nas lanchonetes e bares das arenas. E quanta gente trabalhou de graça para a FIFA em todas as arenas? Copa das Copas! A emoção de uma nação é uma enorme mercadoria. Com quem no Brasil e no exterior a FIFA distribuiu o tanto de dinheiro que ela recebeu do trabalho pago e não pago dos trabalhadores brasileiros?
Os empresários brasileiros, exceto os da CBF, talvez não tiraram tanto proveito econômico da Copa. Os seus representantes, políticos de oposição ao governo, de olhos fixos nas próximas eleições, os mesmos que já tinham saltado do navio que parecia inseguro, tentaram faturar um previsível desgaste político do governo. Já não eram ratos pulando do navio, agora eram urubus esperando a morte de sua presa. Foi um tempo feio de críticas a agouro à Copa. Aqueles xingamentos à presidenta da República, na abertura dos jogos, pareciam expressar mais ódio e intolerância do que descontentamento político. E causaram medo por trazer à lembrança que a violência fascista e nazista tem sua origem na intolerância com as diferenças.
E os grupos que gastaram tanta energia com a campanha NÃO VAI TER COPA? Possivelmente cometeram dois equívocos. Não tomaram em consideração tudo o que, de modo consciente, subconsciente e inconsciente significa o futebol e uma Copa do Mundo. Ainda se está longe de conhecer a origem das emoções causadas pelo futebol. Seriam suas táticas e estratégias? A cooperação entre jogadores, equipes técnicas e serviços? Seria a bela coreografia? O corpo dos atletas teria alguma importância? Não seria também a competição entre grupos e nações? Não estão embutidos, nos passes e chutes tão certeiros, uma infinidade de cálculos instantâneos, matemáticos, físicos, afetivos e dispêndio de energias de tantas ordens? E o que mais?
A todos que tenham uma proposta ou uma concepção de mundo e que queiram torná-las mais coletivas, convém lembrar que está fadado ao fracasso quem não toma em consideração o sentir, pensar, querer, agir e se expressar de pessoas e grupos que se quer atingir numa proposta de intervenção. E teria chances de sucesso quem consegue tocar a alma das pessoas e grupos, cujos comportamentos e valores se pretenda modificar ou perpetuar.
O outro possível equívoco cometido na campanha NÃO VAI TER COPA seria explicado, por Gramsci, enorme autor italiano. Ele passou a vida, de 1920 a 1936, tentando conhecer e viver a teoria, as estratégias e táticas de mudança, no atual estágio de desenvolvimento do capitalismo, estágio definido pelas parcerias, alianças e enfretamentos dos muitos interesses dos grupos todos das sociedades atuais. Gramsci faz uma diferença entre luta cultural e luta política. Na luta cultural ele aconselha a atacar imediatamente os inimigos mais fortes que são os grandes autores que fazem a cabeça de muitos seguidores e repetidores. Caindo os grandes opositores, os pequenos (seguidores e repetidores) não se sustentarão. Já no caso da luta política se vai tentando derrubar os quadros inferiores e minando as posições superiores.
Os grupos do NÃO VAI HAVER COPA atacaram imediatamente a FIFA e o governo brasileiro, sem considerar que eles estão protegidos por muitas casamatas e fortalezas materiais e culturais. Não esquecer as lições de junho de 2013: como pegaram bem as reivindicações relacionadas com transporte público, saúde, educação escolar, segurança, mobilidade urbana, participação social, reforma política! Tudo isso faz parte das fomes do estômago e da alma da nossa gente.

A Copa tem um legado? A FIFA  seguramente está muito satisfeita, foi a Copa das Copas.Talvez as arenas e a infraestrutura seja bem utilizadas. É possível que os turistas estrangeiros tenham ficado impressionados com as belezas naturais do Brasil e a alegria e simpatia dos brasileiros. Pode ser que as urnas em outubro vinguem a falta de educação e intolerância na abertura da Copa. A oposição, no seu agouro, pode ter conseguido conquistar votos para seus candidatos.

O que, entretanto, parece inquestionável é que as manifestações e protestos das ruas e dos grupos de oposição ao governo colocaram o Brasil em questão. Em todas as conversas, em qualquer ambiente, se ouviam questionamentos do gênero: não é demais tanto gasto, num país que precisa muito de serviços de saúde, escolas, segurança, estradas, saneamento, infra-estrutura urbana, transportes coletivos...? Será que o país não sabe, não quer ou não pode definir melhor suas prioridades? Está certo a FIFA/CBF mandar tanto no Brasil? Não seriam esses questionamentos o grande legado da Copa?
Tantas queixas/desejos que vieram à tona antes e durante a Copa da FIFA, sem muito aprofundamento, não estariam sugerindo pistas para se tentar encaminhar bem a gestação e parto de algo que está pedindo para nascer?
E as eleições deste ano? Não sabemos, por acaso que o nosso modelo vigente de democracia se baseia fundamentalmente na compra de votos, trocados por dinheiro e promessas de empregos e outros favores? Quantos de nós conhecemos os candidatos que as cúpulas dos partidos impõem aos eleitores? Seria difícil supor que o voto comprado, em cada eleição, gera apatia política em quem é levado a sentir que política é algo sem valor, igual ao seu voto? E que pode gerar cinismo nos seus compradores e vendedores ao se brincar com política, quando se sabe, mesmo inconscientemente, que é a política que faz a gestão dos interesses, direitos e privilégios da sociedade? E pode também gerar indignação sem muita consequência em quem não vê alternativa para um modelo de democracia tão viciado?
Conhecendo tantos vícios da Democracia Parlamentar Representativa, não seria mais conveniente se abster em vez de alimentar modelo tão viciado? Vale votar? Alguém merece o nosso voto? Que poder teriam os candidatos bem intencionados nessa engrenagem tão comprometida com a manutenção dos privilégios dos grupos econômicos, políticos e culturais dominantes?
O modelo é viciado sim, mas ainda bem conveniente a um modelo econômico que diz se basear na liberdade abstrata de quem, para não viver as humilhações do desemprego, teve que vender sua força de trabalho na produção de bens e serviços. Diz também se basear na liberdade abstrata do indivíduo pobre que tem que se submeter aos péssimos serviços governamentais e privados mais baratos para conseguir a realização de alguns mínimos direitos básicos.

É conveniente sim, mas está em crise provocada pelo surgimento de muitos atores sociais reivindicando a realização e a própria gestão de seus interesses e direitos. Graças à luta generalizada de tantos novos atores sociais, os grupos dominantes foram obrigados a aceitar a ampliação da participação dos grupos subalternizados, com algumas condições: que não se passe dos limites e não se conteste a ordem capitalista. Eles sabem que alguns aperfeiçoamentos são possíveis, necessários e saudáveis para a manutenção da ordem atual.
Para os novos atores sociais subalternizados, nem a ordem capitalista, nem a Democracia Parlamentar Representativa permitem a realização de seus desejos/interesses/direitos. A Democracia Parlamentar que se limita quase só ao voto, não lhes permite participar da gestão das dimensões importantes de sua vida. E o capitalismo, que tem como principal objetivo o lucro obtido pelo trabalho não pago aos trabalhadores, os reduz à simples força de trabalho e vêem, impotentes, toda parte não paga do trabalho da sociedade ser apropriada privativamente pelos grupos capitalistas e seus aliados na sociedade.

Uma perspectiva política se impõe: saltar fora da lógica do capitalismo e da simples Democracia Parlamentar, procurando, em todos os momentos, construir um modo de produzir bens e serviços que resgate a cooperação e a solidariedade apropriadas privativamente pelo modo de produção capitalista e as transforme em forças produtivas para quem trabalha e para a sociedade. E que, em todos os momentos, se tente ampliar a participação, (entendida aqui, como exercício de poder), tão bem camuflada e limitada na Democracia Parlamentar Representativa. Em síntese, a vivência e libertação da cooperação, solidariedade e participação nas práticas econômicas (produção e circulação de bens, serviços e dinheiro) e nas prática explicitamente políticas no executivo, legislativo e judiciário, em nível nacional, estadual municipal, contestarão o capitalismo e já anteciparão um outro modo mais saudável de organizar e gerir a sociedade. Sem esquecer que a vivência da cooperação, solidariedade e participação em outros momentos da vida pode abrir o apetite para viver essas bonitas relações nas grandes práticas econômicas e políticas da sociedade.

Quem tem o projeto revolucionário de saltar fora da lógica do capitalismo e de ampliar a participação política, que partido tomar nas eleições que se aproximam, se todos os grandes partidos aceitam a ordem capitalista e a atual Democracia Parlamentar, com alguns retoques? Não existe, portanto, um grande partido revolucionário no Brasil. O drama é que a nova ordem não cai do céu e novos céus e novas terras não nascerão de um raio fulminante caído do céu. É algo a ser construído. Uma guerra de movimentos em que um exército derruba o outro o toma todos os palácios não parece mais adequada para um mundo tão complexo. O caminho para uma decisão, então, parece ser o seguinte: qual dos atuais grandes partidos criará menos obstáculos à realização dos direitos dos injustiçados da sociedade? Qual entre eles (seguramente nenhum é revolucionário) dará algum incentivo à autonomia das organizações da sociedade civil?

Quem assim proceder pode estar facilitando a luta pela passagem do capitalismo e da democracia restrita para algo que traga mais vida e mais alegria.
                                                                                                         
Ivandro da Costa Sales[1]

[1] Sítio Mãe Liquinha. Taperoá, PB, julho de 2014. O autor, professor universitário aposentado, eventualmente presta assessoria em Gestão Democrática, Análise de Conjuntura e Metodologia de Educação Popular a organizações governamentais e civis 

Como cinco cidades brasileiras oferecem educação de qualidade em todas as escolas da rede pública

By Irenaldo Araújo   Posted at  11:49   Notas No comments
A mãe de Pedro Velena, de 10 anos, esperou dois anos por uma vaga na escola que ela considera a melhor da cidade. Sertãozinho, no interior de São Paulo, tem 17 escolas do 1o ao 5o ano. A mais famosa delas é a Professor José Negri, de onde saem medalhistas em olimpíadas de matemática, física e astronomia. Desde 2006, foram 87. Para Pedro, que diz adorar aulas de matemática e que quer ser engenheiro civil quando crescer, a escolha de sua mãe pela José Negri foi natural.

“Minha mãe é muito exigente. Nove e meio para ela é pouco”, diz Pedro. Se ele tivesse sido matriculado em qualquer uma das outras escolas da cidade, também teria boas chances de tirar notas altas. Mais importante que isso: teria garantido seu direito de aprender.

Sertãozinho faz parte de um seleto grupo de cidades brasileiras que conseguem oferecer educação pública de qualidade com equidade entre as escolas. A distância entre a melhor e a pior escola nesses municípios é pequena. Mesmo a pior escola ensina, no mínimo, as habilidades básicas de português e matemática para os primeiros anos do ensino fundamental. Essa característica garante um dos princípios essenciais de uma sociedade civilizada, onde todos recebem oportunidades para aproveitar seus talentos individuais e se desenvolver.

A pedido de ÉPOCA, Ernesto Martins, coordenador de projetos da Fundação Lemann, analisou os resultados da Prova Brasil de 2011, que avalia as habilidades e competências em português e matemática. Ele considerou o desempenho dos alunos do 1º ao 5º ano, séries quase totalmente de responsabilidade municipal. Usou como referência do nível de aprendizado básico os critérios elaborados pelo movimento Todos Pela Educação. Apenas cinco, num total de 929 cidades, têm 100% das escolas com nota média igual ou superior à recomendada. São elas: Sertãozinho e Lençóis Paulista, ambas em São Paulo, Foz do Iguaçu, no Paraná, São Lourenço, em Minas Gerais, e Sobral, no Ceará. O mesmo estudo foi feito para os resultados do 9º ano, o último do ensino fundamental. Nenhum município (nem os cinco acima) conseguiu garantir médias ideais para todas as escolas.

O indicador mais importante de qualidade de uma rede pública é os alunos terminarem a escola sabendo o que deveriam. Isso é raro no Brasil. Um estudo da Unesco com a Universidade Federal de Minas Gerais mostrou que, em 2009, 22% dos alunos das escolas públicas do Brasil concluíram o ensino fundamental sem habilidades básicas de leitura. E 39% sem conhecimentos essenciais de matemática.

É verdade que o país avançou. O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), que desde 2005 avalia o ensino público, mostra alguma melhora na média nacional. Ele é calculado levando em conta as médias da Prova Brasil e a taxa de aprovação dos alunos. Por trás dessa aparente melhora, porém, persiste uma grande disparidade regional, mesmo dentro dos municípios. Tão importante quanto conseguir uma boa média nacional é ensinar habilidades de leitura e matemática a todos os alunos, sem se importar com seu perfil socioeconômico. “Não existe qualidade sem equidade”, afirma Priscila Cruz, diretora executiva do Todos Pela Educação.

Garantir esse padrão mínimo de qualidade não é fácil. Basta olhar os resultados do Ideb. Alguns exemplos: a média do Ideb (do 5º ano) do Estado mais bem colocado, Minas Gerais, é 5,8 (a escala é de 0 a 10). A do pior, Alagoas, é 3,5. Entre municípios, a disparidade é ainda maior. Claraval, em Minas, tirou 8,3. Monteirópolis, em Alagoas, 2,5. “A equidade é hoje o maior desafio da educação brasileira”, diz Cleuza Repulho, presidente da União dos Dirigentes Municipais de Educação. “Para os municípios, é um esforço gigantesco.”

As cinco cidades que conseguiram esse padrão de qualidade para todos oferecem boas lições para o país. Os caminhos são particulares de cada localidade, mas é possível identificar características ou estratégias comuns:

1. Manter a política longe da sala de aula

Há uma condição comum a esses cinco municípios, um item fundamental para que as reformas escolares se tornem viáveis: continuidade na política de educação. Como, nessa área, os resultados demoram anos para aparecer, é preciso tempo para identificar as falhas e corrigi-las. A mudança no comando municipal é mais rápida e, muitas vezes, interrompe a melhora. É a velha história: muda o prefeito, muda o secretário, muda a ideo¬logia, e o que foi feito pelos anteriores é desfeito para começar tudo do zero. É comum isso acontecer até mesmo entre executivos do mesmo partido. Nesse vaivém dos gabinetes, os mais prejudicados são os alunos.

Em Sertãozinho, a secretária Maria Dirma Francisco, no cargo desde 2001, passou por dois prefeitos em três mandatos. O atual, do PPS, ao perceber que o trabalho feito pela equipe de Dirma dava resultado, continuou o projeto do prefeito anterior, do PSDB (ambos são rivais nestas eleições). “Ele confiou na equipe e deu liberdade para a gente trabalhar”, diz ela. Também com 12 anos de atividade, a reforma de Sobral resistiu a três prefeitos e quatro secretários, ainda que do mesmo grupo político, o PSB. Em Lençóis Paulista, a atual prefeita, em seu primeiro mandato, foi secretária municipal entre 2005 e 2009.

Quando a política partidária respeita as necessidades da sala de aula, a solução começa com as indicações para cargo de diretor de escola. O diretor é figura-chave para que todo o plano das secretarias funcione. Uma das primeiras medidas tomadas por Margarida de Luca Alves quando assumiu a Secretaria de São Lourenço, em 2009, foi determinar que os diretores passassem a ser escolhidos pelos integrantes da própria escola. “Fiquei assustada com a falta de critérios das escolhas”, afirma ela. Em Sobral, os diretores passaram a ser selecionados por mérito também logo no começo das mudanças, em 2001. Quem já era diretor teve de passar pela mesma seleção: uma prova escrita, avaliações comportamentais e entrevistas. Resultado: a rede trocou 75% do total de seus diretores naquele ano – e passou a cobrar mais deles a responsabilidade pela eficácia do ensino em suas escolas.

2. Avaliar sempre e estabelecer metas

Os planos de gestão da educação das cinco cidades campeãs de qualidade têm um único objetivo: todos os alunos precisam aprender, não importa sua classe social. Para saber se o plano está dando certo, é preciso acompanhar o desempenho de cada um dos estudantes. As avaliações sistemáticas são adotadas sem receio. As escolas das redes municipais participam das avaliações federais, como o Ideb, das estaduais e ainda têm uma avaliação própria, uma prova aplicada a todos os alunos, de todas as séries dos primeiros anos do ensino fundamental, no mínimo duas vezes por ano.

Como as avaliações são abrangentes e frequentes, seus resultados também servem para mapear os alunos mais atrasados e como eles evoluem ao longo do tempo. A partir daí – e essa é uma estratégia adotada por todas as escolas de todas as cinco redes –, a recuperação é feita, aluno por aluno, imediatamente. Ninguém espera chegar o final do ano para recuperar o deficit de aprendizagem de uma criança. “É importante que o município olhe com atenção especial para suas piores notas. É aí que ele precisará trabalhar com mais esforço”, afirma Romualdo Portela, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), especialista em políticas públicas de ensino.

Em São Lourenço, os alunos são avaliados três vezes por ano. Existe uma categoria de professor exclusiva para cuidar dos estudantes com dificuldades. O professor recuperador trabalha o ano inteiro com o professor regular, no mesmo turno ou no contraturno, sob demanda. “Ensino o que o professor principal pede”, diz Miriam de Almeida Mota Silva, professora recuperadora da escola Coronel Manoel Dias Ferraz, na periferia da cidade. Miriam é a responsável pela recuperação de Vanessa Lopes Silva, de 10 anos. Ela deveria estar no 6o ano, mas ainda cursa o 4o. Sua principal dificuldade era entender os textos que lê. Com as aulas de Miriam, a menina começa a ganhar mais fluência. “Com ela, consigo aprender o que não entendi na sala de aula”, diz Vanessa.

Outro resultado das avaliações é o estabelecimento de metas. Cumprir os objetivos, nesses municípios, é uma obsessão. Em Lençóis Paulista, toda a rede trabalha com metas, do pessoal da cozinha aos alunos. Isso foi determinado em 2005, quando a atual prefeita era secretária de Educação e criou o plano de gestão das escolas. Metas individuais são estabelecidas de acordo com as da escola e da rede. O diagnóstico vem da avaliação municipal, uma prova aplicada em todas as séries do ensino fundamental, três vezes por ano.

Depois de 23 anos de magistério, a professora Fátima Cardim começou a trabalhar com metas. Sua missão neste ano é ensinar textos de diversos gêneros, como fábulas, cartas ou receitas. Os alunos e pais foram informados em março de que precisavam melhorar nesse quesito. A meta dela é ter 100% de sua classe com a habilidade. Na avaliação de março, foi detectado que 18 dos 20 estudantes não dominam os gêneros de escrita. Na segunda avaliação, feita em julho, apenas um aluno continuava com dificuldade. “O bom disso é que todas as pessoas estão envolvidas num único objetivo. Antes, meu trabalho era solitário.”

3. Políticas sob medida para cada escola

Com os resultados das avaliações, é possível enxergar que escolas apresentam problemas específicos e criar, a partir daí, políticas sob medida. Essa é uma das principais estratégias para garantir a equidade. Há cinco anos, Foz do Iguaçu tinha altas taxas de abandono e reprovação, infladas por determinado grupo de escolas. Localizadas em bairros próximos da margem do Rio Paraná e da Ponte Internacional da Amizade, entre Foz e Ciudad del Este, no Paraguai, essas escolas perdiam seus alunos para quadrilhas de contrabandistas, que aliciam famílias inteiras para fazer a passagem de mercadorias ilegais entre um país e outro.

A partir daí, a secretária Joane Vilela, no cargo desde 2008, criou uma equipe formada por assistentes sociais e psicólogos, que trabalham com as crianças e suas famílias. Ao mesmo tempo, Foz do Iguaçu adotou um programa estadual em que cada escola preenche uma ficha com informações sobre os alunos que sumiram das aulas. Essas fichas os tornam visíveis, e a equipe pode atuar com mais eficácia e acompanhar caso a caso. Com um apoio extra da prefeitura, escolas velhas foram reformadas. Foi também criado um período para receber alunos que precisam realizar atividades fora do horário escolar, o contraturno. A taxa de abandono da rede caiu de 7%, em 2008, para zero, em 2011.

O rendimento dos alunos melhorou. Na Escola Municipal Pedro Viriato Parigot de Souza, numa área onde atuam tanto quadrilhas de contrabandistas como traficantes de drogas, o Ideb passou de 4,2, em 2005, para 7,3, no ano passado. A Escola Municipal Elenice Milhorança, no Jardim América, um dos bairros vizinhos à região da Ponte da Amizade, saiu de 4,1 e chegou a 7 no mesmo período. A estratégia de montar um plano para as escolas mais críticas ajudou a puxar para cima a média de todo o município. Em 2005, o Ideb de Foz do Iguaçu foi de 4,2. A escola com a maior nota tirou 5,3. Em 2011, Foz ficou com 7, e a escola com maior nota tirou 8,6 – a melhor do país.

4. Valorização do professor

Gestão, avaliação, metas, recuperação. Nada disso funciona se, dentro da sala de aula, o professor não está apto e estimulado a ensinar. Ao mesmo tempo que promoviam as mudanças, todos os cinco municípios investiram na remuneração e formação dos mestres. Na remuneração, prevalece a bonificação de acordo com o resultado do desempenho dos alunos. Sobral paga R$ 250 a mais por turma que atinge a meta. Se o professor tem duas turmas, ganha R$ 500. Em São Lourenço, um comitê avalia o professor levando em conta a frequência e a didática em sala de aula. Se ele tira nota igual ou maior que 7, ganha um bônus que pode chegar a 50% do salário. Sertãozinho paga 14o salário para os que têm alta frequência.

A formação dos professores é o fator que mais demanda atenção. Sobral criou uma estrutura em que todo professor do 1o ao 5o ano assiste a aulas sobre como usar o material didático daquele mês. Antes de entrar em sala de aula, eles ainda discutem com os orientadores pedagógicos. Com planos de aula afinados, o aproveitamento do tempo em sala melhorou. Antes, o professor chegava atrasado, gastava tempo organizando a turma ou dispensava os alunos mais cedo, por falta de ideias de atividades. As aulas, que duravam, na prática, duas horas, agora rendem quatro horas, segundo o secretário Julio Alexandre.

Em Sertãozinho, foi criado um cargo novo: assistente pedagógico, para cuidar do aprimoramento dos docentes. Eles saem da cidade em busca de cursos oferecidos por universidades para aprender técnicas didáticas usadas nas aulas. Quando voltam, transmitem o que aprenderam aos coordenadores pedagógicos de cada escola. E estes ensinam aos professores. “Antes de fazer o aluno gostar da escola, tive de fazer o professor gostar de dar aula”, diz a secretária Maria Dirma.

Com professores bem treinados, essas redes conseguem dar certa autonomia à prática em sala de aula. Os mestres precisam trabalhar com o material didático escolhido pela rede, em muitos casos, desenvolvem técnicas próprias de ensino. Em Foz do Iguaçu, as professoras Leda Márcia Dal Gin e Maria Isabel Gomes Vieira tomaram a iniciativa de dividir a mesma classe, de 5o ano. Uma ficou com as aulas de português e ciências. A outra, com matemática, geografia e história. “Várias vezes, conversando, percebíamos que tínhamos notado algum problema com um ou outro aluno. Ele não receberia a atenção necessária se uma não tivesse comentado com a outra”, diz Leda.

O sucesso desses cinco municípios é, em parte, possível porque eles tinham condições especiais para isso. Trata-se de redes pequenas, com no máximo 51 escolas de anos iniciais. O secretário de Educação e os supervisores conseguem acompanhar pessoalmente as escolas, para controlar e cobrar resultados. Também parece mais fácil para municípios pequenos criar um ambiente em que todos se sentem responsáveis pelo aprendizado do aluno, inclusive as famílias. Sobral recebe apoio técnico e financeiro do Unicef. Apesar de ter médias altas no Ideb, essas cidades não são perfeitas. São Lourenço tem uma alta taxa de defasagem escolar, que aparece como distorção entre a idade e a série do aluno. Um terço das escolas de Lençóis Paulista não alcançou a meta ou teve queda no Ideb em 2011. Todas estão com médias muito baixas nos anos finais (6o ao 9o ano) do ensino fundamental.

Mesmo assim, de alguma forma e com muito esforço, esses cinco municípios encontraram um caminho. Ele tem mais a ver com a gestão da rede que com pedagogia, um dado relevante em tempos de eleições municipais. A receita milagrosa não existe. Essas cidades estão apenas fazendo, com mais eficiência, algo básico para que alunos como Pedro, de Sertãozinho, de classe média, e Vanessa, que estuda na periferia de São Lourenço e tem mãe analfabeta, tenham chances iguais de aprender. Que sirvam de inspiração a outras.


CAMILA GUIMARÃES, COM DÉBORA RUBIN, DE SERTÃOZINHO, E FABIULA WURMEISTER, DE FOZ DO IGUAÇU - REVISTA ÉPOCA - 06/10/2012 - RIO DE JANEIRO, RJ

Quarenta anos de “Jesus Cristo Libertador”.

By Irenaldo Araújo   Posted at  11:47   Notas No comments
Entre os dias 7-10 de outubro está acontecendo em São Leopoldo junto ao Instituto Humanitas da Unisinos dos Jesuitas, a celebração dos 40 anos do surgimento da Teologia da Libertação. Lá estão os principais representantes da América Latina, especialmente, seu primeiro formulador, o peruano Gustavo Gutiérrez. Curiosamente no mesmo ano, 1971, sem que um soubesse do outro, tanto Gutiérrez (Peru), quanto Hugo Assman (Bolivia), Juan Luiz Segundo (Uruguai) e eu (Brasil) lançávamos nossos escritos, tidos como fundadores deste tipo de teologia. Não seria a irrupção Espírito que soprava em nosso Continente marcado por tantas opressões?

Eu, para burlar os órgãos de controle e repressão dos militares, publicava todo mês no ano 1971 um artigo numa revista para religiosas Sponsa Christi (Esposa de Cristo) com o título: Jesus Cristo Libertador. Em março de 1972 reuni os artigos e arrisquei sua publicação em forma de livro. Tive que esconder-me por duas semanas, pois a polícia política me procurava. As palavras “libertação” e “libertador”haviam sido banidas e não podiam ser usada publicamente. Custou muito ao advogado da Editora Vozes, que fora pracinha na Itália, para convencer os agentes da vigilância de que se tratava um livro de teologia, com muitos rodapés de literatura alemã e que não ameaçava o Estado de Segurança Nacional.

Qual a singularidade do livro (hoje na 21.edição)? Ele apresentava, fundada numa exegese rigorosa dos evangelhos, uma figura do Jesus como libertador das várias opressões humanas. Com duas delas ele se confrontou diretamente: a religiosa sob a forma do farisaísmo da estrita observância das leis religiosas. A outra, política, a ocupação romana que implicava reconhecer o imperador como “deus” e assistir a penetração da cultura helenística pagã em Israel.

À opressão religiosa Jesus contrapôs uma “lei” maior, a do amor incondicional a Deus e ao próximo. Este para ele é toda pessoa da qual eu me aproximo, especialmente os pobres e invisíveis, aqueles que socialmente não contam.

À política, ao invés de submeter-se ao Império dos Césares, ele anunciou o Reino de Deus, um delito de lesa-majestade. Este Reino comportava uma revolução absoluta do cosmos, da sociedade, de cada pessoa e uma redefinição do sentido da vida à luz do Deus, chamado de Abba, quer dizer, paizinho bondoso e cheio de misericórdia fazendo que todos se sentissem seus filhos e filhas e irmãos e irmãs uns dos outros.

Jesus agia com a autoridade e a convicção de alguém enviado do Pai para libertar a criação ferida pelas injustiças. Mostrava um poder que aplacava tempestades, curava doentes, ressuscitava mortos e enchia de esperança todo o povo. Algo realmente revolucionário iria acontecer: a irrupção do Reino que é de Deus mas também dos humanos por seu engajamento.

Nas duas frente criou um conflito que o levou à cruz. Portanto, não morreu na cama cercado de discípulos. Mas executado na cruz em consequência de sua mensagem e de sua prática. Tudo indicava que sua utopia fora frustrada. Mas eis que aconteceu um evento inaudito: a grama não cresceu sobre sua sepultura. Mulheres anunciaram aos apóstolos que Ele havia ressuscitado. A ressurreição não deve ser identificada com a reanimação de seu cadáver, como o de Lázaro. Mas como a irrupção do ser novo, não mais sujeito ao espaço-tempo e à entropia natural da vida. Por isso atravessava paredes, aparecia e desaparecia. Sua utopia do Reino, como transfiguração de todas as coisas, não podendo de realizar globalmente, se concretizou em sua pessoa mediante a ressurreição. É o Reino de Deus concretizado nele.

A ressurreição é o dado maior o cristianismo sem o qual ele não se sustenta. Sem esse evento bem-aventurado, Jesus seria como tantos profetas sacrificados pelos sistemas de opressão. A ressurreição significa a grande libertação e também uma insurreição contra este tipo de mundo. Quem ressuscita não é um Cesar ou um Sumo-Sacerdote, mas um crucificado. A ressurreição dá razão aos crucificados da história da justiça e do amor. Ela nos assegura que o algoz não triunfa sobre a vítima. Significa a realização as potencialidades escondidas em cada um de nós: a irrupção do homem novo.

Como entender essa pessoa? Os discípulos lhe atribuíram todos os títulos, Filho do Homem, Profeta, Messias e outros. Por fim concluíram: humano assim como Jesus só pode ser Deus mesmo. E começaram a chama-lo de Filho de Deus.

Anunciar um Jesus Cristo libertador no contexto de opressão que existia ainda persiste no Brasil e na América Latina era e é perigoso. Não só para a sociedade dominante mas também para aquele tipo de Igreja que discrimina mulheres e leigos. Por isso seu sonho sempre será retomado por aqueles que se recusam aceitar o mundo assim como existe. Talvez seja este o sentido de um livro escrito há 40 anos.

Veja o livro Jesus Cristo Libertador, Vozes, Petrópolis 2012.
Leonardo Boff 

Torço, mas não vibro

By Irenaldo Araújo   Posted at  11:45   Notas No comments
Em conversa sobre o contexto das eleições, sempre tenho procurado compreender a realidade vivida em cada município. Afinal, discorrer sobre política é algo que me fascina e o que me entristece é quando vejo alguém dizer que detesta política.
O meu fascínio pela política vem de longe. Quando criança, em Taperoá, ficava atento as palavras do meu avô, Alonso Pereira Pinto, quando se mostrava inconformado com um governo construído sob a égide da ditadura militar e, ao mesmo tempo, mostrava-se um defensor dos ideais do MDB (Movimento Democrático Brasileiro). Lembro-me como ele acompanhava atento o processo eleitoral nos municípios de nossa região e até de nosso país, afinal não se votava para governador, nem para presidente. Lembro-me, como se fosse hoje, quando me pedia para anotar o resultado das pesquisas eleitorais realizadas, ao vivo, pelas ruas de Patos, através da Rádio Espinharas, para saber a tendência neste município para a escolha dos seus representantes.

O meu fascínio pela política é uma riqueza herdada da Teologia da Libertação. Aqui em Patos, podemos citar como referência: o Pe. Raimundo Noberto, com os seus discursos inflamados contra as injustiças sociais, o seu trabalho na então capela do Morro, na Paróquia de Catingueira, com a Pastoral Universitária e na Rádio Espinharas de Patos. Outro expoente aqui em Patos: Dom Gerardo Andrade Ponte, um profeta que se mostrava bastante sensível às pessoas empobrecidas, acolhia a todos como um pai e se mostrava furioso quando se deparava com situações de injustiça. Mais tarde, tive acesso a outros expoentes da Teologia da Libertação: Dom José Maria Pires, Dom Hélder Câmara, Leonardo Boff, dentre outros.

O meu fascínio pela política recebeu influência de alguns educadores. Homens e mulheres que tinham como meta o fortalecimento da consciência crítica dos alunos, não estavam preocupados apenas com o repasse de conteúdos. Aqui em Patos lembro o entusiasmo do Professor Osman e da Professora Terezinha, no Colégio Diocesano e no Colégio Cristo Rei. Neste mesmo período, fui tendo contatos com a obra de Paulo Freire, especialmente pela forma apaixonada como falava a seu respeito o Pe. Ivan Teófilo, salesiano que lecionava no ITER (Instituto Teológico do Recife).

O meu fascínio pela política vem a partir da luta pelo direito ao voto e pela implantação de políticas públicas que garantam o bem-estar da população. Neste sentido, compreendo a riqueza da política para além do momento das eleições. A política é como o ar que respiramos, apesar de não percebermos está presente em tudo aquilo que fazemos.

O meu fascínio pela política é que me leva a sempre estar procurando conhecer o contexto das eleições nos municípios da nossa região. Pelas questões acima expostas tenho algumas dificuldades em relação ao nosso contexto político: 1) votar ou manifestar apoio a partidos e grupos que têm suas origens na ditadura militar; 2) compreender candidatos como se fosse protegido por uma redoma – cada candidato é a ponta de um iceberg, é necessário conhecer toda a sua base de sustentação; 3) a forma como as pessoas se envolvem emocionalmente com a política, gerando uma espécie de bipartidarismo (herança maldita da ditadura militar), classificando o outro como o inimigo, ficando difícil de se manter qualquer diálogo, mas, pelo contrário, surgindo cenas de desrespeitos, com agressões de todo tipo – as pessoas alteradas emocionalmente têm dificuldade de utilizar aquilo que é comum a espécie humana (raciocínio), utilizam com mais frequência aquilo que há em comum com os demais animais, a partir do instinto de agressão e defesa; 4) em ver como as pessoas não utilizam o momento político para ouvir os candidatos, naquilo que se propõem ao bem-estar da população e ao zelo pela coisa pública – este deveria ser um momento de grandes debates, tendo como foco modelos de gestão que garantam a participação dos diversos setores da sociedade.

Perante a situação que vivemos, acredito que tem se tornado difícil militar na defesa de algumas candidaturas, tendo em vista que há uma gradual perca do idealismo político em algumas figuras que estão ao nosso redor. Neste sentido, olhando para os cenários que se constroem em alguns municípios, no estado e até no país, chego a torcer pela vitória de alguns candidatos, mas não vibro com as possíveis eleições.

Seca ou estiagem?

By Irenaldo Araújo   Posted at  11:42   Notas No comments
Muito se fala sobre o fenômeno da seca e da estiagem. Estas expressões são sinônimas ou são significações de fenômenos diferenciados?

Para quem compreende seca e estiagem como palavras sinônimas geralmente vê a seca como uma fatalidade, como um grande problema relacionado à falta d’água e de alimentos e que para suprir tais dificuldades é preciso que se invista em políticas que tragam água e comida para o povo sertanejo. É interessante que as soluções propostas vêm sempre de fora e o povo é visto como vítimas de um fenômeno natural. O interessante é que tais campanhas geram comoção social e as ações do Estado são sempre de forma paternalista. Tais campanhas geraram tantos benefícios para os grupos detentores do poder, que foi virando um ciclo vicioso, que passou a ser chamado de indústria da seca. Como parte deste grupo está àquelas pessoas que carrega a certeza de que a superação de tais problemas se encontra na transposição do São Francisco, vista como a última obra da referida indústria.

E quem compreende seca e estiagem como fenômenos diferentes, caminha com a certeza de que a seca é um fenômeno criado por grupos sociais hegemônicos que se utilizam de um fenômeno natural no semiárido, denominado estiagem, para tirar proveito social e econômico.

Neste sentido, ao se compreender a estiagem como um fenômeno natural no semiárido, vai se investir mais em ações estruturantes para se promover uma cultura que se pauta na lógica do armazenamento. Assim, as pessoas vão estar mais atentas ao armazenamento de água para o consumo humano, animal e para a produção; armazenamento de alimentos para a população humana e animal; à capacidade de suporte das pequenas propriedades, plantando culturas e criando animais respeitando as particularidades ambientais, dando atenção especial ao clima, solo, índice pluviométrico e vegetação.

Ao se compreender a estiagem como um fenômeno natural vamos ter mais condições de se construir uma cultura que se pauta a partir de outro olhar sobre o semiárido, especialmente a partir de processos de construção de uma educação contextualizada. Neste sentido, quanto mais se investir em ações estruturantes mais a população vai ficar independente de grupos que detêm o poder político e econômico em nossa região.

Acredito que novo cenário se constrói no semiárido brasileiro. Pois apesar de estarmos vivendo uma das maiores estiagens dos últimos trinta anos, o comportamento da população tem sido diferenciada. Será que isso não é um sinal dos tempos!?

Quanto mais em ações estruturantes, menos o fenômeno da seca vai se fazer presente em nosso semiárido.

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    Educador, graduado em Pedagogia e Especialista em Psicopedagogia, pelas Faculdades Integradas de Patos; Especialista em Educação Ambiental e Sustentabilidade, pela Universidade Federal de Campina Grande; Mestre em Ciências Florestais, pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Florestais, da Universidade Federal de Campina Grande; Doutorando em Educação, pelo Programa de Pós-graduação em Educação, da Universidade Federal da Paraíba (Campus I).