terça-feira, 7 de junho de 2011

A mercantilização do São João e a resistência da tradição

By Irenaldo Araújo   Posted at  09:42   No comments

Miguel Almir Lima de Araújo, Professor da UEFS

O céu estava assim em festa
 pois era noite de São João...
Luiz Gonzaga

Ô Iaiá vem ver, ô iaiá vem cá,
vem ver coisa bonita, São João no arraiá.
Zé Dantas
 
Os processos de mercantilização da cultura têm sido cada vez mais violentos num mundo em que os artefatos humanos, bem como, muitas vezes, os próprios humanos, tendem a ser reduzidos a meros produtos de consumo diante dos imperativos das lógicas funcionais e utilitárias. Porém, como os símbolos mais profundos e vastos das tradições culturais revelam os valores e sentidos primordiais de cada povo, e considerando que estes são, em última instância, irredutíveis a essas lógicas, estes tendem, no dinamismo dos fluxos da cultura, das relações sócio-culturais, a resistir, a renascer e a se afirmar.
Com a celebração do São João, nos mais diversos rincões do Nordeste, não tem sido diferente. Em muitos lugares, esta tem sido intensamente abocanhada pelos poderes públicos e privados. Estes descobriram que os festejos joaninos estão profundamente enraizados nos imaginários, nas vidas, na alma e no corpo dos povos sertânicos, e, desse modo, investem pesado nos processos de apropriação e de massificação destes com os propósitos mais diversos e, na maioria das vezes, escusos. Isso ocorre, desde os interesses politiqueiros que pretendem encurralar a população nos redutos eleitoreiros, aos fins meramente econômicos que tendem reduzir o São João apenas a fins mercadológicos. Obviamente que os currais de hoje são mais sofisticados, dissimulados e até invisibilizados.
Nesse cenário, os espertalhões da indústria cultural utilizam artifícios bastante sedutores e requintados para garantir o sucesso dos mercados do entretenimento com as produções musicais de um forró chamado, tanto de estilizado, como eletrônico, com tons carnavalizados etc., em que predominam arranjos e letras bastante empobrecidos. As apresentações da maioria das bandas que produzem esse tipo de música se convertem em espetáculos em que os movimentos aeróbicos dos dançarinos beiram a cenas de striptease. Assim, com suas coreografias apelativas, estas bandas interpelam, de modo provocador, os instintos sexuais das pessoas através da exposição extravagante dos corpos, das bundas, das calcinhas.
Nessa esfera, grandes bandas são fabricadas para projetar músicas fáceis, desprovidas de qualidade, tanto na letra como nos arranjos, como produtos adocicados e de fácil penetração e consumo. Observando com cuidado, nos shows dessas bandas, de modo geral, as pessoas não dançam. Apenas assistem, quase que anestesiadas, os espetáculos das apresentações imbuídas de seu forte apelo sexual. Opera-se, com abundância, um refrão que rima banda com bunda. Instala-se um certo “banditismo do forró”. Realço que o sexo, a sexualidade é uma das expressões mais belas da vida humana. Porém, na expressão de sua qualidade vital, esta não pode ser convertida nessa espetacularização mercantil.
Esses processos de massificação do São João vão operando uma verdadeira carnavalização da folia joanina com o poder avassalador das indústrias do entretenimento que pretendem confinar essas festas a pacotes ornamentados de consumo anestesiante.
As prefeituras de grande parte dos municípios da Bahia estão investindo bastante nas festas de São João. Descobriram que esta pode ser um filão muito rentável política – predominantemente a politicaria – e economicamente. Para tanto, contratam as bandas mais famosas e reluzentes nas vitrines desse mercado, que representam esse processo de mercantilização do forró, com pagamentos de cachês altíssimos, para realizarem seus espetáculos. Raramente são contratados os trios de forró regionais e locais. Quando isso acontece, estes se apresentam nos momentos mais inconvenientes e inoportunos.
O argumento apresentado pelos representantes das prefeituras que organizam esses São Joães em que predominam a carnavalização, o axé, o arrocha, o forró estilizado etc. é que isso representa o desejo e o gosto da maioria da população. Mas, urge perguntarmos, por que essa maioria da população deseja, gosta e superestima tanto esses estilos musicais e subestima as tradições próprias e locais? Precisamos ponderar acerca dos processos capciosamente armados pelos poderes instituídos, política e economicamente, viabilizado através das mídias comerciais, que implicam em investir sistematicamente nos mecanismos de homogeneização. Homogeneização que incide em massificação e manipulação dos desejos, dos gostos e das vontades das pessoas e dos coletivos, na imposição dissimulada de produtos muito bem ornamentados que apenas nutrem a lógica do consumo, da espetacularização, da uniformização.
Sabemos que os processos de homogeneização e de uniformização implicam na negação das diferenças, da diversidade, dos conflitos, dos diálogos, dos princípios democráticos, facilitando, portanto, as posturas viciadas, autoritárias e domesticadoras dos poderes iníquos. Precisamos compreender que o “povo” pode, também, ser “educado” (assim como é “deseducado”) para valorizar as expressões próprias de suas tradições, para apreciar criações musicais que estimulam e qualificam sua sensibilidade, sua imaginação, sua criatividade, seus valores próprios, sua consciência cidadã. Precisamos de políticas públicas sérias e dignas que estimulem a afirmação das culturas locais, da identidade cultural de cada povo que se traduz em cuidado efetivo com a cidadania. Isso implica, necessariamente, em ir além dos cinismos das demagogias da semvergonhice politiqueira.
Nos últimos anos, também tem surgido e se expandido nas grandes cidades, algumas vertentes que fazem uma reinterpretação do forró tradicional incorporando tonalidades mais urbanas nas músicas e nas danças. Entre estas vertentes, uma das que estão mais fortes é a do chamado forró universitário (Falamansa etc.). De certo modo, alguns destes grupos mantêm algum cuidado com a qualidade musical e com as letras em suas ressignificações da tradição do forró, nos contextos dessas grandes cidades, apesar das tendências de mercantilização.
Algumas poucas administrações municipais mais sensatas estão investindo um pouco mais nos trios de forró pé de serra, nos grupos de folguedos da tradição joanina, bem como instalando, nas festas de São João, palcos alternativos para apresentações dos mais variados grupos dessa tradição cultural.
A tradição da celebração do São João, como qualquer fenômeno das tradições culturais, carece de processos constantes de renovação para continuar existindo. Porém, isso não implica em reduzir a tradição a mero espetáculo mercantil com o esvaziamento de seus repertórios e sentidos primordiais.
As matrizes de qualquer tradição cultural são portadoras de mananciais vivos e expressivos, em suas formas e conteúdos, que revelam sentires e valores, crenças e cosmovisões que dão significado e sentido à vida de cada povo; que perfazem o dinamismo de sua identidade cultural, de seu pertencimento singular a uma região, a um país, ao planeta terra. O cuidado e a afirmação do pertencimento local fortalecem os grupos e comunidades para os fluxos das relações dialógicas e interculturais com outras tradições, com a diversidade cultural da humanidade.
A celebração do São João, que se constitui como a manifestação cultural mais presente e enraizada na vida dos nordestinos e sertanejos, é imbuída de significados e sentidos vastos e fundos que robustecem e dão encantamento à vida destes povos. Os folguedos joaninos da quadrilha, do pau de fita, do quebra-pote, do bumba-meu-boi, a expressividade do forró pé de serra, em suas variações de arrasta-pé, xote, baião e xaxado; as saborosas comidas e bebidas típicas (milho, licor...); a força e a magia das fogueiras e de seus mastros... são encantarias que dão vibração e boniteza às folias joaninas, que movem e co-movem o viver, as labutas desse povo “cabra da peste”. Povo que desafia tantas agruras, mas que celebra com intensidade suas folias, e, com estas, estampa suas vidas.
Em cada celebração do São João, nos arraiás esparramados pelos cafundós do Nordeste, esses folguedos são realizados desde suas matrizes inspiradoras, mas, na diversidade de cada recanto, estes são apresentados de modo significativamente variado. Esse fato traduz a singularidade da sensibilidade e da criatividade de cada indivíduo, grupo e comunidade, a riqueza de nossa diversidade cultural.
Em sua intensidade singular, originária e originante, a celebração do São João se revela como uma festança multicor que traduz momentos de compartilhamentos da alegria e da simpatia do estar-juntos através dos símbolos da tradição que tocam fundo na alma dos sertanejos. Símbolos que mobilizam suas vidas na força dos rituais que a afirmam e renovam. O estado de animação que se descortina através dos folguedos, das músicas e danças de forró é bastante visceral e contagiante.
Essas manifestações revelam valores fundos que nutrem a alma e o coração humanos, e que, assim, são irredutíveis às lógicas utilitárias do consumo. Valores que dão cor e robustez ao existir cotidiano de seus protagonistas e que, dessa forma, ultrapassam as esferas quantitativas do ter e se adentram nas instâncias qualitativas do ser, dos sentidos que animam e vivificam os existires humanos.
Apesar desse processo sistemático da tentativa de redução da celebração de São João aos formatos homogeneizadores da lógica do consumo, dos propósitos políticos muitas vezes perniciosos, a força da heterogeneidade e do vigor dessas tradições culturais, com seu dinamismo próprio, vai resistindo. Desse modo, estas vão se reinventando e se fortalecendo nos fluxos das contradições e movimentos que dão ritmo e vigor a cultura, a história humana. A despeito das tentativas de espetacularização e de mercantilização do São João, nos mais diversos rincões do Nordeste, rebentam experiências de celebrações joaninas que, inspiradas nas matrizes na tradição, a renovam e vivificam na perspectiva de afirmação da identidade cultural desses povos.
O forró pé-de-serra cada vez se expande um pouco mais através da produção de CDs com composições e canções de qualidade primorosa. Nessas searas temos, por exemplo, nosso ícone maior, o Luiz Gonzaga, Targino Gondim, Dominguinhos, Marinês, Hugo Luna, Trio Nordestino, Adelmário Coelho, Gereba, Santana, Flávio José, Quininho de Valente, Celo Costa, João Sereno, Cicinho de Assis, Dinho Oliveira, Volante do sargento Bezerra, Clã Brasil etc. e tantos trios de forró que ressoam a intensidade da boniteza desses ritmos Nordeste adentro e afora. Nesses territórios, tem aumentado o número de orquestras sanfônicas, bem como, o número de jovens que estão aprendendo a tocar sanfona e formando trios de forró. Também se intensificam os shows, festanças e celebrações com forró pé de serra e com folguedos joaninos nos mais variados espaços educativos e sócio-culturais. Obviamente que ainda não na proporção em que desejamos. Porém, de modo expressivo se consideramos esse cenário algumas décadas atrás em que esse ritmo musical era considerado como cafona e ultrapassado.
Causa certa impressão percebermos que, pelo Brasil afora, a presença inspiradora do símbolo mítico de Luiz Gonzaga se propaga expressivamente nas mais diversas instâncias da Arte e da Cultura, desde o cinema, a música, o cordel, os festivais, as pesquisas acadêmicas (dissertações e teses) etc.
Em Salvador, por exemplo, temos forró pé de serra durante o ano inteiro em alguns espaços que investem nessa tradição. Isso ocorre também nas mais diversas capitais do país, sobretudo no Nordeste. O São João do Pelourinho, em Salvador, tem sido bastante expressivo na qualidade de sua programação com a predominância do forró pé de serra e de diversos folguedos joaninos com presença intensiva da população da cidade. Há 10 anos realizamos a Celebração do São João da UEFS, em Feira de Santana-Ba., e a folia tem se ampliado e se fortalecido a cada ano.
Em diversos municípios do interior, a despeito da predominância, como vimos, da tendência de mercantilização do São João, pequenos grupos, comunidades, ONGs etc. estão incrementando experiências relevantes que se propõem a contribuir nos processos de resistência, de renascimento e de afirmação da celebração do São João através da fecundez de seus folguedos tradicionais e do forró pé de serra.
Portanto, muito além dessa predominância da lógica homogeneizadora e consumista, da mercantilização e da espetacularização dessas tradições culturais, que pretendem reduzir o vigor de seus símbolos aos ditames do utilitário e do anestésico, do quantitativismo do ter, a celebração do São João tem resistido e se fortalecido processualmente nos mais recônditos rincões da região Nordeste. Resistência que, em suas proporções possíveis, tem sido protagonizada pelas posturas altaneiras de indivíduos, grupos, comunidades e ONGs que estão comprometidos com a afirmação, a renovação e o fortalecimento dos símbolos mitopoéticos dessas tradições culturais, do dinamismo e da intensidade de nossa identidade cultural. E viva o São João minha gente!

Junho de 2011.

Texto circulado no grupo da RESAB, através do e-mail elmolima@gmail.com, em 04 de junho de 2011, 09:51h

Sobre Irenaldo Araújo

Educador, graduado em Pedagogia e Especialista em Psicopedagogia, pelas Faculdades Integradas de Patos; Especialista em Educação Ambiental e Sustentabilidade, pela Universidade Federal de Campina Grande; Mestre em Ciências Florestais, pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Florestais, da Universidade Federal de Campina Grande; Doutorando em Educação, pelo Programa de Pós-graduação em Educação, da Universidade Federal da Paraíba (Campus I).usto.
Postado por: Irenaldo Araújo

0 comentários:

Assine nosso Conteúdo

    Proprietário do Site

    Educador, graduado em Pedagogia e Especialista em Psicopedagogia, pelas Faculdades Integradas de Patos; Especialista em Educação Ambiental e Sustentabilidade, pela Universidade Federal de Campina Grande; Mestre em Ciências Florestais, pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Florestais, da Universidade Federal de Campina Grande; Doutorando em Educação, pelo Programa de Pós-graduação em Educação, da Universidade Federal da Paraíba (Campus I).